No Calor da Hora – A Guerra de Canudos nos jornais, da crítica literária e especialista na obra de Euclides da Cunha, Walnice Galvão, será lançado durante a edição 2019 da Festa Internacional de Paraty (Flip). Esgotada, a obra ganha lançamento pelo selo Suplemento Pernambuco, da Cepe, 20 anos depois
Tendencioso, sem escrúpulos, dado a falsificar fontes, e ao mesmo tempo fascinante. Os adjetivos usados pela crítica literária e ensaísta Walnice Nogueira Galvão para definir o tipo de texto publicado nos periódicos de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, além do de enviados estrangeiros, durante a Guerra de Canudos (1896 a 1897), já nos dão uma pista do que vamos encontrar na obra No Calor da Hora – A Guerra de Canudos nos jornais. Trata-se de uma síntese crítica de toda a documentação existente sobre o conflito, propondo uma interpretação nova dos fatos. Após 20 anos de sua primeira publicação, e já fora de catálogo, o livro ganha nova edição do selo Suplemento Pernambuco, da Cepe, e será lançado durante a Festa Internacional de Paraty (Flip). A Flip deste ano homenageia Euclides da Cunha, sobre cuja obra Walnice é especialista.
Apesar de Euclides ter sido um dos correspondentes de Canudos – pelo jornal A Província de São Paulo, hoje O Estado de São Paulo -, o escritor e militar não foi dos jornalistas a escrever a reportagem mais fiel ou mais detalhada. “Tanto é que ele nunca a recolheu em livro. Sua relevância reside no fato de que ali encontramos o embrião do futuro livro Os Sertões, que só ficaria pronto cinco anos depois”, afirma a autora.
Quanto à interpretação nova dos fatos que Walnice propõe, ela se faz analisando outras Canudos, de outros tempos e lugares que a história e os teóricos como Friedrich Engels, Max Weber e Eric Hobsbawm já mostraram, “enfatizando os anseios de libertação, bem como o potencial transformador”. A cientista política e historiadora Heloísa Starling, que assina a orelha do livro, ressalta a importância de olhar para o Sertão, de onde o Brasil surgiu, para em seguida se perder em termos identitários; e depois para onde voltou e mostrou, na Guerra de Canudos, ser a República violenta que foi e ainda o é, tendo a imprensa como cúmplice. “Terminada a leitura, não se esqueça de se indagar: existe algo desse passado que não passou?”. Em tempos de fake news, a pergunta é, no mínimo, pertinente. “No Calor da Hora foi escrito durante os primeiros anos da década de 1970, quando a tortura, os desaparecimentos de pessoas e a distorção deliberada dos eventos executada por uma mídia cúmplice exibiram a face terrível da ditadura militar”, ressalta ainda Heloísa.
Canudos alavancou a venda de jornais e fez surgir outros tantos. Muitos deles com textos sem referências e cartas conspiratórias supostamente autênticas. Nos relatos de jornais de todo o Brasil sobre a guerra ocorrida no Sertão da Bahia, Walnice encontra “farta cópia de material jornalístico no estilo da galhofa”, o que é bizarro, pois se trata do relato de uma guerra. Sem falar da justificativa para esse banho de sangue que matou sertanejos esfomeados e soldados idem, sob a desculpa de que Antônio Conselheiro – um peregrino que fundou uma comunidade sócio-religiosa para fugir da fome causada pela seca – liderava uma rebelião pela volta da Monarquia e derrubada da República. Falta com a verdade também a publicação de textos atribuídos a Antônio Conselheiro, fazendo a todos pensar se tratar de um homem ignorante, que não sabia escrever. Como afirma Walnice, “o líder sertanejo era um homem letrado e escrevia com correção, como se pode verificar nos autógrafos, inclusive na carta que o Instituto Histórico e Geográfico da Bahia possui”. Por que começou a guerra? “Até hoje não consta que se originou de crimes ou assaltos praticados pelos jagunços. Por motivo religioso, não foi, porque a Constituição federal garante a liberdade religiosa; por motivo de sedição ou revolução, também não foi, porque os jagunços não tinham saído de Canudos para deporem nenhuma autoridade. O motivo não confessado, mas verdadeiro, parece ter sido este: Conselheiro, a cuja influência mais de uma vez recorreram os Srs. José Gonçalves, Rodrigues Lima e Luiz Viana por ocasião de eleições, recusou-se uma vez a atender ao último, e daí veio a guerra”.
Fazendo uso do estilo literário “parnasiano-naturalista-positivista-patriótico”, como definiu Walnice, foi com a ajuda dos jornais que os fazendeiros, a igreja e o governo da Bahia na época ganharam apoio da opinião pública para recuperar as terras de Canudos às custas do massacre de 20 mil sertanejos e cinco mil militares; degola de prisioneiros e incêndio de todas as casas do vilarejo. Restaram apenas poucas mulheres e crianças, que foram dadas de presente ou vendidas.
Sobre a autora
Walnice Nogueira Galvão é professora titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo. No Calor da Hora é resultado do primeiro estudo acadêmico sobre Euclides da Cunha e a Guerra de Canudos, apresentado em 1972, quando Os Sertões fazia 70 anos. Desde então a autora já produziu 12 livros sobre o tema, entre eles a edição crítica de Os Sertões (1985); e reedição do Diário de uma expedição (2000), contendo as reportagens de Euclides sobre a Guerra de Canudos.
Trechos dos jornais:
Gazeta de Notícias (Rio de Janeiro)
Canudos, Canudos, Canudos. Descomposturas, descomposturas, descomposturas. Foi o que houve durante toda a semana: mais nada. As facadas que se trocaram nas brigas urbanas; os carros da Central, descarrilando e matando gente; a Bohème, no Lírico, e a Mancha que Limpa, no Sant’Ana — são acontecimentos que não merecem comentário.
Canudos e o bate-barbas parlamentar encheram os sete dias.
De Canudos, que hei de eu escrever? Por ora, as notícias que de lá chegam, são de luto e de tristeza… Falemos, pois, da Câmara — já que é forçoso falar de qualquer coisa…
(sem assinatura)
Folha da Tarde (Rio de Janeiro)
“Nova Yorque, 28 de julho. — O Comitê Imperialista telegrafou para aqui declarando ter notícias exatas do Estado da Bahia, no Brasil, recebidas no dia 27 e confirmadas pelo Comitê de Buenos Aires em telegrama reservado. Diz esta comunicação que as forças que ocupam Canudos já destroçaram quatro expedições republicanas; que as forças do General Artur Oscar estão em debandada, com falta de mantimentos, munições e medicamentos; que mais de 300 desertaram e que a maior parte dos oficiais se acham fora de combate; que a soldadesca recusa obedecer as ordens de avançar, sendo muitos soldados, recrutas novos, doentes e sem preparo militar.”
The Times “O movimento de Antônio Conselheiro não tem importância em si. A fracção extremada do
partido republicano no Rio acusou os monarquistas de serem cúmplices do Messias sertanejo; mas o correspondente está persuadido de que tal acusação não tem fundamento algum, embora servisse de pretexto para molestar, atacar e até matar “proeminentes monarquistas”.
Artigo de Euclides da Cunha:
Nossa Vendeia
Um só homem bastaria para dizer o que foi aquilo, o que aquilo é e contar a história das lúgubres ocorrências que se deram ali; no entanto, não bastam soldados e oficiais, nem mesmo o testemunho de coronéis gloriosos e generais assinalados, pois tudo se contesta, se contradiz e se desmente, contrapondo-se ao testemunho de uns o testemunho de outros.
Esta situação, porém, por si mesma se define e se demonstra, como um axioma, patenteando a desordem que se manifesta refletindo fora e as feridas que sangram lá dentro, onde uma mesma pira mantém o fogo sagrado das grandes devoções patrióticas e o fumo das explosões naturais do desgosto e do descontentamento.
Serviço
Lançamento do livro No Calor da Hora, de Walnice Nogueira Galvão
Quando: 10 de julho às 19h
Onde: Flip
Preço: R$ 80 (livro impresso); R$ 27 (ebook)
Contatos para entrevista:
Walnice Nogueira Galvão: wngalvao@uol.com.br/ (11) 3884-1881/ 99387-9060
Schneider Carpeggiani (editor) – carpeggiani@gmail.com/ (81) 99633-0979